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O North American Navion um clássico totalmente restaurado

O North American Navion, ano 1946, foi totalmente restaurado e ganhou uma vistosa pintura amarela tornando ainda mais prazeroso o voo neste elegante monomotor


Marcio Jumpei
Marcio Jumpei

O North American “Navion”  foi um dos mais raros aviões que já passaram pela seção Ensaio da AERO Magazine, sendo o destaque da edição 145, de maio de 2006. Relembre conosco esse voo memorável.

Visto de cima ele lembra até um Fusquinha com asas. O formato do canopy, com duas janelas laterais de cada lado e uma janelinha traseira; o cone de cauda, exageradamente longo, assim como o robusto conjunto do estabilizador horizontal, com deriva fixa e lemes de linhas retas; e até a forma de fixação das asas, enfim, todas essas partes transmitem a impressão de que foram adaptadas para fazer um carrinho voar.

Mas apesar de sua aparência pouco ortodoxa, o North American “Navion” possui um charme inquestionável. É o clássico caso do feio que é apaixonante. A história do “Navion” é até um pouco misteriosa e há poucas referências sobre ela na Enciclopédia de Aviação Jane’s.

Conversando com meu amigo Jeremias de Paula Martins, que possui dois exemplares — um “Navion” E e um Rangemaster — fiquei sabendo que a norte-americana Tusco Corporation, de Galveston, no Texas, fabricou os modelos D (motor Continental, de 240 hp), o modelo E (250 hp) e o modelo F (285 hp).

Já a Navion Aircraft Corporation produziu os modelos G1 e G2 Rangemaster, que é basicamente o mesmo “Navion” E, em que o canopy deslizante foi substituído por um teto fixo e porta. A Jane’s afirma que o Navion foi projetado pela North American Aviation, mas duas versões foram posteriormente produzidas pela Ryan: o “Navion” A, equipado com motor Continental E-185-3 (205 hp), e o “Navion” B, ou Super 260, equipado com um motor Lycoming GO-435-C2 (260 hp).

No total foram produzidas 1.238 aeronaves e não há menção dos demais modelos. O “Navion” também foi utilizado como aeronave de ligação e observação pelo Exército e pela Guarda Nacional dos Estados Unidos sob a designação L-17B — da qual foram construídas 163 unidades.

Navion
O avião é muito dócil de comandos e, na configuração lisa com motor reduzido, o estol acontece a 65 milhas por hora

A versão L-17A foi produzida originalmente pela North American Aviation, mas posteriormente a Ryan introduziu modificações que resultaram na versão L-17C. Estas valentes aeronaves exibiram uma excelente folha de serviços durante a Guerra da Coréia. Com relação à versão Rangemaster, os modelos G e H, vale destacar que foram equipados com motor Continental IO-520 (285 hp).

Hoje existem apenas dois “Navion” voando no Brasil, um deles é o PT-AXI, do Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, que vamos ensaiar agora. Originalmente, o avião, ano 1957, pertenceu a um missionário mórmon norte-americano e depois foi vendido para o professor Roberto Wasicki que ficou com o “Navion” durante 30 anos e promoveu várias modificações aprovadas (com STC), sendo que a principal ocorreu no sistema de refrigeração do motor.

O sistema original era up draft — ar entra por baixo do motor e sai por cima — e foi instalado um down draft, em que o ar entra por cima e sai por baixo. O motor original do PT-AXI era um Continental de 205 hp que o Bierrenbach trocou, em 2000, colocando um Continental IO-470-C (250 hp) e uma nova hélice McAuley bipá.

No mesmo ano, foram instalados os cow flaps. O “Navion” foi todo reformado, todos os cabos de comandos foram trocados, assim como o sistema hidráulico, e ganhou a nova pintura amarela com detalhes em azul.

Navion
O PT-AXI está equipado com motor Continental, de 250 hp, que teve o sistema de refrigeração original modificado para down draft 

Na década de 1950, quando o “Navion” chegou por aqui, havia pelo menos uns dez exemplares no Campo de Marte. Um deles, do comandante Portino, certa vez bateu na região do Jaraguá, em São Paulo, mas todos sobreviveram. O Bierrenbach me lembra que o presidente do Aeroclube de São Paulo, Jakob Polakow, também tinha um “Navion”, assim como o comandante Augusto César Lolly e o deputado Rubens Paiva, pai do escritor Marcelo Rubens Paiva.

Outra figura famosa era o Tony Zieminsky, piloto polonês que lutou na RAF na Segunda Guerra Mundial, o único a fazer acrobacia com este monomotor. O avião ficou famoso por ter sido usado pela Anésia Pinheiro Machado em seu último vôo internacional, de Nova York ao Rio de Janeiro.

O PT-AXI é um velho conhecido meu desde os seus tempos de hangarem no Campo de Marte. Enquanto não iniciava o seu completo restauro, o Flávio sempre o manteve em movimento e não era incomum vê-lo passar na taxiway, aos sábados ou domingos.

Vou reencontrá- lo agora no Aeródromo de Boituva, no interior paulista, totalmente restaurado pelas mãos do mago Ulisses Berggren. Apesar de algo berrante, o amarelo Cub foi muito bem escolhido, destacando a esportividade do avião. Fica difícil imaginá-lo em um “creminho” insosso, em um marrom sisudo ou em um vermelho Ferrari. O amarelo ficou perfeito.

O espaço interno do “Navion” só é comparável aos velhos carrões americanos. Assentos altos, no plano médio da cabine, cinco janelões com vista panorâmica, espaço entre assentos para quatro gigantes, mais uma criança no assento traseiro. A distribuição de instrumentos e comandos, muito bem planejada, remete a uma época em que a preocupação com o conforto dos tripulantes e passageiros era quase comparável à segurança.

Navion Cokcpit
Nostalgia dos anos dourados com painel básico e equipado apenas para voos visuais 

Acomodado no assento da esquerda, observo a distribuição de instrumentos e comandos e tenho a sensação de estar no interior de um Ford Landau.

À esquerda, no painel do piloto em comando, temos velocímetro, turn-cordinator, horizonte artificial, giro direcional, altímetro, climb e o giro suction. Ainda no canto esquerdo ficam as luzes de trem recolhido, da bomba hidráulica e do gerador. Logo abaixo, ficam os switches DIM, de gerador, da chave master, do rotatio beacon, das luzes de navegação e as chaves de magnetos e de partida do motor. O painel de áudio Collins, com VHF Bendix/King KY 97A TSO e ADF Bendix/King KR 86, está ao centro e, logo abaixo, ficam a alavanca do trem de pouso, a alavanca dos flaps, o compensador manual, a chave da bomba hidráulica e a chave da bomba elétrica.

Vale destacar que o trem de pouso e os flaps funcionam com o acionamento da bomba hidráulica. Isto significa que, após a decolagem, o piloto deve acionar a bomba hidráulica e também depois de recolher o trem. Da mesma forma nos procedimentos de pousos. Antes de comandar o trem ou os flaps, primeiro liga-se a bomba hidráulica.

Cockpit Navion
Capota retrátil, bancos de couro e muito espaço na cabine lembram os antigos carrões americanos

No painel da direita estão o indicador de RPM, Manifold Pressure, temperatura da cabeça dos cilindros, do óleo, indicador de pressão do óleo, EGT, amperímetro, pressão hidráulica e transponder. Mais abaixo ficam a manete de ajuste de mistura, circuit-brakes, manetes de ar quente e ar da cabine. O console de manetes tem apenas as manetes de potência e de passo da hélice. No painel superior, acima do pára-brisa, ficam o horímetro, um relógio analógico e os indicadores do tanque principal e auxiliar.

O PT-AXI é um “Navion” modelo E, fabricado em 1946, homologado para cinco assentos, com peso máximo de decolagem de 1.429 quilos. O trabalho de restauro consumiu cinco anos.

Está previsto um voo de duas horas em que deveremos sobrevoar as regiões de Torre de Pedra, logo após a cidade de Tatuí, Serra de Botucatu, Represa de Barra Bonita e deveremos retornar acompanhando o curso do rio Tietê. Comigo, segue o comandante Ulisses enquanto o Cessna Skylane paquera será conduzido pelo comandante Darley Cassimiro.

Briefing concluído e estamos prontos para o acionamento. Chave Master ligada, manetes de potência e mistura à frente, três segundos de bomba elétrica, recuo da manete de potência, chave de magnetos e partida.

O IO-470 acorda, meio engazopado. Ajuste de rotações para o aquecimento, gerador ligado, rotate-beacon, rádios ligados, giro e horizonte ajustados e vamos deixando o motor aquecer sem pressa.

A manhã está radiante e o sol ainda não conseguiu impor o seu calor mais intenso. Uma camada fragmentada de estratos-cúmulos não permite que o sol nos atinja com toda a sua intensidade. Como dizia o velho Pedrozo: “Vou buscar um pouco de ar fresco, por debaixo das nuvens”. É o que vamos procurar fazer hoje.

Navion em voo
Com velocidade de cruzeiro de 155 milhas por hora e consumo médio de 45 litros/hora, o Navion tem alcance máximo superior a 1.100 km

Canopy aberto, para entrar o ar fresco da hélice, e o ronronar do Continental desperta minha memória para os companheiros e lugares que freqüentei nesses capítulos da minha vida. Volto ao presente com a chamada do Skylane que já está pronto para iniciar o táxi.

Lentamente, prossigo no táxi para a cabeceira e observo que várias pessoas nos acenam do outro lado da pista. O “Navion” realmente chama a atenção. Alinho na posição de 45 graus na cabeceira e inicio o check de cabeceira: magnetos, temperaturas, comandos, canopy travado, cintos e alinho na posição 3. Pista livre, seguro nos freios e vou levando a manete de potência à frente. A rotação sobe, libero os freios e iniciamos uma corrida acelerada rumo à sustentação. 

O Continental ruge, engolindo ar ainda fresco da manhã. Monitoro a velocidade e rapidamente atingimos 60 milhas por hora. Uma suave pressão no manche e já estamos suspensos no colchão de ar. Mantenho o nariz baixo, buscando aumentar a velocidade, enquanto o Ulisses aciona a bomba hidráulica e recolhe o trem de pouso. Liberto do arrasto dos trens, o “Navion” rapidamente embala para 90 mph, mantendo 600 pés/minuto na subida.

Reduzo a potência para 24 polegadas no Manifold Pressure e o passo de hélice para 2.500 rotações. Executo uma curva apertada para a direita, buscando avistar o Skylane que já está na corrida da decolagem. Continuo com curva à direita, buscando encurtar a distância. O “Navion” manobra como um caça. É inacreditável a sua docilidade de comandos, detalhes que seduzem qualquer piloto. O Skylane curva à esquerda e começo a acompanhá-lo, buscando uma tangente no seu nariz. Antes que ele alcance a rodovia Castelo Branco, com proa oeste, já estamos grudados na sua ala. Em nenhum momento preciso levar a ma- nete de potência no batente.

Iniciamos a sessão de fotos, subindo para 4.000 pés. Durante boa parte do voo, mantenho velocidade de 130 mph (210 km/h) sendo que a competência do comandante Darley como líder e a grande manobrabilidade do “Navion” facilitam muito nossa tarefa.

Ganhamos altura e seguimos em direção à Serra de Botucatu. Mesmo sobrevoando a região a 6.000 pés de altura é possível admirar toda a beleza da serra coberto por matas nativas, protegidas pelo relevo acidentado. Prosseguimos costeando a serra, buscando a cidade de Barra Bonita.

Parece que o “Navion” também está emocionado com tanta beleza. Seu motor “ronrona” macio e suas asas cortam o ar com uma suavidade como se não quisessem perturbar a magia daquele momento.

Iniciamos um mergulho suave em direção ao leito do Rio Tietê, a fim de retornar para Boituva. Seguimos agora em voo rasante, sobre o leito do rio. Um bando de garças brancas, pousadas em uma das margens, giram suas cabeças com a passagem do “Navion”. Devem estar curiosas sobre aquele pássaro metálico. Trabalho de fotos e filmagens encerrado, o Skylane despede-se de nós, retornando ao campo.

Ficha Técnica Navion

Vamos ganhando altura lentamente, para encerrar nossa avaliação. Nivelamos a 6.000 pés e anoto 155 mph indicadas. Em hands-off, não se observa nenhuma tendência de rolagem ou guinada. Em curvas de média inclinação, noto uma ligeira tendência em mergulhar, principalmente nas curvas pela direita.

Com a aeronave limpa e motor todo reduzido, o estol acontece a 65 mph. Com flap configurado para pouso, o “Navion” estola a 60 mph; com full-flap e trem embaixo, o estol acontece com 50 mph.

A eficiência e harmonia de comandos são impressionantes, pois o piloto tem total manobrabilidade a 70 mph. O nível de ruído interno é aceitável para um senhor nascido em 1946, mas, com o canopy aberto, é recomendável usar fones de ouvido.

Satisfeito com a performance deste “jovem senhor”, aguardo o pouso de alguns páraquedistas e executo uma série de rasantes para mais uma sessão de fotos.

Em seguida, vou para o pouso. Bomba hidráulica ligada, flap para pouso e baixamos o trem de pouso. Luzes indicativas ligadas, giro perna-base e intercepto a reta final. Check pré-pouso concluído, passo de hélice todo à frente, velocidade mantida em 70 mph e cruzo a cabeceira com 65 mph.

O toque é suave e o “Navion” consegue parar em menos de 200 metros sem usar os freios. Noto que é desejável manter um pouco de motor até o toque, para não perder o fluxo de ar no estabilizador horizontal. Prossigo para o pátio gramado e, neste momento, preciso admitir: sou mais um piloto que foi conquistado pelo charme e pelas qualidades do “Navion”. Sem dúvida, um aviãozinho apaixonante.

* Publicado originalmente na AERO Magazine 145 · Maio/2006

Por Decio Corrêa
Publicado em 04/04/2024, às 18h20


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